FOTOS DE VENEZA
(É preciso registrar que elas são obcecadas por validar os bilhetes de trem - inclusive nos lugares onde não precisa e onde ninguém sabe o que vem a ser isso, como na Croácia. Mas essa história eu conto depois.)
Era véspera de Ferragosto, dia 15.08, sexta-feira, o feriado mais importante da Itália (sabe-Deus-por-quê). Eu pensava seriamente em ir a Roma encontrar o Ferdinand, que terminaria exatamente no dia 15 a peregrinação pela Toscana. Mas eu estava com muita preguiça, confesso, de voltar para aquela cidade abarrotada de turistas e com chuva.
Aí, por acaso, cruzei com a Aline na escada da escola e ela me disse que ia passar o dia, sexta-ferragosto, em Veneza. Hm. Eu havia relutado todo esse tempo para não ir sozinha pra cidade com fama de ser a mais romântica do mundo. Definitivamente eu não queria ir sozinha. Mas, então, cá estava eu em Firenze, na noite de uma quinta-feira estranha, sabendo que os próximos dias na cidade seriam vazios, tristes e solitários porque todo mundo viaja nesse feriado... Então, va bene, achei por bem mudar de idéia: andiamo a Venezia!
OI? NÃO ERA AQUI?
O trem saía às 7h. Perdemos. Porque não saía da estação principal, onde a gente estava. Sim, lembre-se disso ao viajar de trem pela Europa: mesmo se você pensar que o trem sai dali, do lugar onde você comprou o bilhete, porque ninguém te disse nada diferente disso, pergunte, e pergunte de novo, e pergunte mais uma vez pra confirmar. Ainda mais se for na Itália. Porque aqui ninguém te informa nada e, se informa, MUITAS vezes a informação está errada.
Bom, pegamos o próximo trem, uma hora depois, e a viagem já começou, digamos, divertida - e cheeeeia de emoção.
Os lugares da gente não eram exatamente juntos. Aproveitamos que algumas das nossas poltronas estavam ocupadas e fomos sentar juntas em outro canto. Obviamente as pessoas foram chegando e foi dando confusão, já que uns estavam nos lugares dos outros. Não só nós. Em todo o trem tinha gente trocada. Mas o povo ia se virando. Sem stress.
Até que uma americana histérica, ruiva, feia, chata e mal-amada, veio nos tirar do lugar dela e do marido cafona. Explicamos que a gente não queria fazer uma família com crianças se mudar do nosso lugar... se ela não podia, por favor, fazer a gentileza de procurar outras cadeiras vazias. Mas ela disse NÃO e perguntou, bem grossa, por que a gente não tirava quem estava in our places. Respondemos com o resumo do que os americanos definitivamente não são: BECAUSE WE ARE NICE. (e porque queríamos sentar juntas, oras!! o resto era lábia de brasileiro, sejamos honestas. mas a nega era chata!)
Saímos do lugar dela falando um monte de bobagem em inglês, pra ela entender o quanto estava sendo not nice. E aí, eu te pergunto: tinha lugar pra gente sentar? Claro que não. Andamos o trem inteiro sorrindo, rindo, falando, e fomos a atração da população européia e sem graça que ocupava todas as poltronas do Eurostar-Firenze-Venezia. Aliás, fomos a atração por onde passamos nas próximas 72 horas. Ser brasileira é realmente particular e diferente de tudo. Somos incrríveis!
Oi?? Não era aqui??
Porque, depois de tudo, pensamos, afinal, por que a gente não se fez de besta com a americana? Todo mundo faz isso. Faz coisa errada e aí usa a desculpa de que não entende nada, fica falando a própria língua, dá de ombros, faz aquela cara de "oi?? não era aqui? hãn?? ah, no no, no falo italiano, no inglese, só portuguese. POR-TU-GUÊS". Oi?? Oi? E, nisso, a outra pessoa acaba desistindo e vai embora...
Dúzias de risadas depois, descobri que o restaurante tinha, sim, mesinhas e cadeiras, no próximo vagão. Vêm, meninas, vamos sentar ali!! Mas veio também o mocinho gorducho-garçon, pra variar com má notícia: ragazze, com mala aqui não pode. Oi? Não era aqui? A gente pensou, mas não disse. Ah, mas, moço, aconteceu isso, isso e isso. Tá bom, ragazze, então vão ali pra primeira classe e qualquer coisa eu explico pro carabinieri. Ciao, americana bobona... fica aí na sua cadeirinha. Primeira classe, vazia: quem disse que europeu é rico e chique? Enfim, ficamos lá mesmo e não aconteceu nada.
A Laura-Pausini-bilheteira passou por nós duas vezes, olhou com o típico olhar rude-grosso dos italianos, e foi embora, acho que cantando "Marco se n'è andato e non ritorna più...".
Finalmente: Veneza.
TÁ BOM, VAMOS PRA CROÁCIA!
Fomos direto pra fila dos bilhetes porque as meninas iam pra Croácia no fim do dia, passar o fim de semana, e já queriam comprar a passagem. A viagem era durante a noite toda. E eu ia comprar meu bilhete de volta pra Firenze. Quê? Adivinha o que elas me convenceram a fazer... sim, também comprei passagem pra Croácia. Se eu estava preparada? Não exatamente. Mas quem liga?
TUDO é muito caro. Comprei só máscaras, e olhe lá! Mas tive vontade de comprar todas, todas, todas as máscaras de todas as lojas de Veneza. E pronto, dei por visto.
IO, MIO MARITO E DUE CANI
Onze e meia da noite e lá vão as três patetas pro trem com destino à Croácia. Precisa validar! Precisa validar! A Aline depois de uma taça de vinho fica realmente engraçada e obcecada por validar o bilhete do trem. Pois é, não basta comprar, precisa validar. Se você não valida, paga 5o euros de multa. E é nesse momento que entra também o "oi?? não era aqui??". Mas a gente validou, obviamente, enquanto a são-paulina gritava. E ria.
(no fundo, eu estava me divertindo. queria mudar de lugar, é verdade, mas não fiquei nem um pouco mal-humorada quando vi que não dava mesmo pra mudar, como ficaria tempos atrás. eu estava ótima. foi tudo bem, no fim das contas.)
Aline e eu estávamos bem engraçadas e ficamos divertindo a cabine por alguns minutos, até ela capotar e dormir. Aliás, tô pra conhecer alguém que dorme com tanta facilidade. Você pisca e a nega dormiu. A Luíza, embora jurasse que tinha perdido o sono e que me faria companhia, também dormiu depois de oito minutos. Eu fiquei arrumando o cubículo, consertando as cortinihas pra tentar deixar o lugar um pouquinho mais escuro, e controlando a abertura da janela porque quando o trem andava, a janela escancarada deixava entrar um vento danado e fazia um barulho do cão. Quando o trem parava - muitas vezes! - o que era do cão era o calor. Então eu tive que abrir e fechar a madrugada toda.
Por falar em cão, não podia faltar uma bizarrice nesse trem. Lá pras duas da manhã, quando eu conseguia finalmente cochilar, depois de fazer toda a organização da suíte, mochilas e afins, alguém abre a nossa portinha de vidro, me cutuca, me desperta e me diz: "ciao, io e mio marito siamo qui in questa cabina e noi abbiamo due cani... va bene se os canes entrarem agora e deitarem aqui no chão??"!!
O QUÊ???? Dois cachorros?? Acho que eu tô sonhando. Não, não tô. Mas, moça, você não está entendendo... Olha o tamanho disso aqui! Nem tem lugar no chão porque ele está coberto com nossas mochilas, sapatos e coisas. Como vai meter dois cães aqui?? E ainda por cima, cane fede... nesse calor, imagina! Ah, e tem mais um detalhezinho: estamos aqui em CINCO! Tem só UM sofazinho sobrando... (abarrotado de coisas em cima dele). Como mesmo você e seu marido imaginam ocupar esse micro-sofá juntos????
Não, aquilo de-fi-ni-ti-va-men-te era um engano. E era. A mocinha estava na carroça errada. Isso mesmo: carroça. É vagão em italiano. E principalmente o lugar onde estávamos era, sem sombra de dúvida, uma carroça.
YÚLHÁNA - BRADZILHÁNA
O episódio dos canes foi surreal. Mas tentei esquecer e voltar pro meu delicioso cochilo no vagão-favela da carroça.
O soninho merecido durou menos de uma hora. Porque aí chegamos na Slovênia e lá vieram os policias para checar passaportes e caras amassadas de gente que dormia. Os policiais slovenos pareciam da máfia. Eu me senti uma bandida. Principalmente quando o poderoso chefão passou horas com meu passaporte na mão falando meu nome por um microfoninho. Yúlhána... Yúlhána... Bradzilhána. E ele só fez isso comigo. O que eu fiz? A idade? Acho que não. O sobrenome árabe, provavelmente. Só pode ser. Porque na volta aconteceu a mesma coisa. E só comigo de novo. Os passaportes das meninas, eles olhavam, carimbavam e ciao.
E a coisa se repetiu por três ou quatro vezes. O trem parava, entrava a tropa de choque, acordavam a gente sem dó, pediam os passaportes, faziam cara feia e saíam pisando firme. Até chegarmos em Zagreb, na Croácia, lá pras seis da matina - com duas horas de atraso, de tanto que o trem parou no caminho. E fazia frio, muito frio. Quem tinha blusa, meia, cachecol? Você tinha? Nós não.
CRACÓVIAS E CRACOVENCES
Trocamos Euros por Kunas - dinheiros que a Luíza e nós chamamos de Cracóvias. Sim, porque a gente conseguia lembrar da palavra Cracóvia, mas não lembrava Kuna de jeito nenhum! E o lugar também chamávamos de Cracóvia porque Croácia às vezes não vinha na cabeça. Então Cracóvias est. E cada Cracóvia gasta valia uns minutos de risada. Olha, nenhum dinheiro do mundo paga o tanto que rimos nesses dois dias.
Mas as pessoas da Cracóvia, digo, da Croácia, é que são o grande negócio do lugar. Que gente gentil, meu Deus! Que gente gentil! Nem sempre falam inglês direito. Muitos falam italiano, pelo menos um pouco. Todos com quem cruzamos foram incrivelmente simpáticos.
Tivemos a sorte de ter uma amiga croata passeando com a gente, a Natalja - o J se diz I. Fomos aos lugares importantes, a uma feira de antiguidades onde o mocinho que vendia livros me deu um novo testamento em croata (?), comemos comida típica, comemos bem, e muito, e fomos até a um jogo de futebol com a são paulina roxa gritando DYNAMO!.
TREM-FANTASMA
E quem disse que a volta seria tranquila?
Sentada eu já sabia que seria, mas... vai vendo.
Nossas poltronas estavam lá. Ocupadas, mas as pessoas se levantaram pra gente sentar. A sensação é horrível. De fazer alguém levantar pra você sentar. Ainda mais porque aquela pessoa já vinha viajando naquele horror havia pelo menos cinco horas e tinha mais sete pela frente. Ah, e omelhor de tudo: estávamos no vagão onde as pessoas podiam ir ali no corredor bem do nosso lado e fumar!!! Não é inacreditável?? São só cerca de 20 lugares do lado de onde se pode fumar e NOSSAS POLTRONAS ERAM EXATAMENTE ALI.
Sim, eu pensei que estava na pegadinha do Faustão. Mas, não.
Chegando na Itália, eles fizeram um escândalo. Certo. Veio a polícia italiana, deu um jeito de abrir o vagão trancado e foi lá ver o que estava acontecendo. Voltou dizendo que o povo que estava na cabine deles tinha bilhetes, mas parecia estranho. Fariam a checagem completa em Veneza. Mas o melhor foi que esses albaneses, romenos, seja o que for, se faziam de idiotas com os policiais e diziam que não estavam entendendo... quer dizer: "oi, não era aqui?"!!
Em resumo, não preguei o olho a noite inteira: passei sete horas ouvindo frases em italiano que só entendia pela metade... sobre o Festival de música de Budapeste, sobre filmes italianos, sobre Berlusconi e sobre as Olimpíadas na China. E o moço ainda falava em dialeto de Veneza! Eu não merecia.
Enfim, tudo tudo tudo pode acontecer nos trens da Europa. Principalmente entre esses países meio "novos" na comunidade. Também acabou a luz no meio do viagem. A máfia entrou revistando olhando feio. Meu nome, como eu já disse, foi repetido dúzias de vezes no foninho da Swat. E um casal de portugueses que viajava sem lugar contou que um outro trem que pegaram se soltou da locomotiva... É, assim mesmo. O primeiro vagão, o que puxa, soltou eles no meio do nada. Não se sabe como. E eles ficaram ali, largados no nada por horas. Até que chegou outro, pegou eles e pronto. Ficou por isso mesmo. Ninguém explicou nada. Niente.
A Cróacia foi o recheio de um sanduíche com pão estranho...
Mas é interessante ter história pra contar. (Medo.)
FOTOS DE ZAGREB - CROÁCIA
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Um comentário:
Uaua, foi uma aventura e tanto, mas é isso que dá sabor às expedições que fizemos pelo mundo. Adorei e logo vou saber como isso é na minha própria pele, pois em breve estou indo visitar eles. Mas penso que esses lugares não são problemas para quem andou pelas grandes metrópoles do gigante Brasil! Apreciei a riqueza dos detalhes no texto, a forma com que apresenta estas experiências da "real life". Parabéns! Lucélia Schirrmann, jornalista, em Ivoti, Rio Grande do Sul.
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